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As 'mitologias pessoais' de Filipe Moreau - entrevista

Poesia, música, processo criativo, inspirações, parcerias... entre outros assuntos é o que você experimentará na entrevista com o músico e escritor (entre tantos outros 'títulos') Filipe Moreau. Acompanhe:

1. Como surgiu seu interesse por arte? O que surgiu primeiro: a música ou a literatura? (ou isso seria o mesmo que perguntar: o ovo ou a galinha? rs). Elas sempre caminharam juntas no seu percurso artístico?

Não acho que sejam a mesma coisa, embora o interesse por uma possa ter levado ao interesse pela outra, como é para a maioria das pessoas. Mas só para deixar claro, a literatura em si, dos poemas e textos corridos mais reconhecidamente eruditos, consegue existir sem a música, embora o próprio falar tenha características musicais de ritmo e entonação (e de fato, agora reconheço, esta é uma pergunta intrincada).

Se for para responder a fundo à sua pergunta, talvez esses dois interesses derivem de um só, anterior, que era o de aprender a falar. E depois desse houve também um interesse igualmente importante, como é para todas as pessoas, de poder registrar as coisas que se diz e as que se percebe musicalmente: aprender a ler e escrever.

Sobre a infância, minha mãe dizia que eu decorava muito facilmente as músicas de rádio. Ótimo! E o que me lembro mesmo é de uma ótima professora de português e redação chamada Lena Passos, baiana, que me ajudou a decorar músicas do Caetano (poesia melódica, no caso deste grande poeta).

Tive uma aula de música na infância, e depois um ótimo professor de violão, Cezar Nogueira, quando eu já tinha 14 anos. E passei também pela escola do Zimbo Trio.

Na faculdade de Letras (no colégio e cursinho tive dois bons professores de literatura, Aguinaldo Gonçalves e Francisco Ascher) é que comecei a entender mesmo a literatura como arte independente da música. E também como arte independente (e muito anterior) às artes gráficas, porque a essas alturas eu já me confundia, apreciando o Décio Pignatari (com quem tive aulas) e os irmãos Campos, e achando que a arte gráfica fosse importantíssima. Hoje eu não acho.

A poesia tradicional se basta na métrica da declamação, e prescinde da música. Fernando Pessoa, os ingleses, franceses, os bons escritores de todas as línguas (e esta não é para ser uma citação hierárquica) podem e devem ser lidos sem acompanhamentos melódicos, seguindo-se a um ritmo de recitação que costuma estar indicado pela métrica, mas não é obrigatório. A poesia, e a literatura toda, é para ser silenciosa.

Mas como já até tangenciei como resposta, a escrita supostamente reproduz uma fala (normalmente podendo ser mais lapidada e precisa que ela), e na própria fala há características musicais (no Renascimento, por exemplo, a pessoa erudita era considerada um “músico” da fala). Há expressões artísticas muito explícitas em relação a isso, como é o caso do RAP.

Na história humana, pode-se dizer que a poesia e a música nasceram juntas sim, quando à volta da fogueira as tribos antigas praticavam os seus cantos de ritos, mitos e lendas faladas e cantadas, que eram tradicionais. Tanto a linha melódica quanto as rimas da literatura oral facilitavam a memorização, e assim, livros imensos como a Odisseia e o Mahabharata atravessaram séculos inteiros, de geração em geração, sem sofrer muitas alterações. Eram poesia e música, pois, ao mesmo tempo, o ovo e a galinha.

2. Você tem uma grande produção artística, parece estar sempre produzindo, parece ter muito material e conteúdo. É músico e compositor, poeta e escritor, passeia pela prosa histórica, a poesia concreta, o universo infantil... Qual é o segredo dessa multiplicidade? O que te inspira e te faz produzir tanto e sempre? Qual gênero literário mais te atraí? E na música? (são muitas perguntas em uma, mas pode responder em um textinho pequeno, de uma forma geral).

Acho que a tendência de produzir em múltiplas áreas é geral entre os artistas, assim como a do escritor em explorar diversos gêneros, e do músico em se expressar por vários instrumentos. Se é um fenômeno moderno, a ver com o acesso a variados conhecimentos via computador, tenho minhas dúvidas... Há muitos casos de músicos/escritores no romantismo, e para pegar um exemplo mais extremo, de quinhentos anos atrás, do pintor e escultor Michelangelo, ele era também arquiteto, fortificador e outras coisas. E, principalmente, POETA (tenho um livro de poemas dele).

Os chamados artistas multimídia existem aos montes, mas o diferencial talvez esteja mesmo nisso que também faz parte da sua pergunta, a vontade de produzir, a chamada “inquietação” do artista.

A psicologia pode ter uma explicação para a vontade de fazer arte das pessoas. A minha é grande, sempre foi. Quando se revelou que havia uma fonte intensa de achados poéticos querendo jorrar de dentro de mim, na adolescência (e talvez já fosse assim na infância, mas eu lembro menos), fui me deparando com as questões de receptividade nos meios sociais. Em casa, minha mãe valorizava, no começo, e meu pai nunca quis olhar, era como se não existisse isso (ou não servisse para nada, como muitos até hoje sentem).

Talvez por causa da minha timidez, da dificuldade de comunicação e insegurança, ou da vontade de ser alguém, eu fui me fixando em um mundo interior de produções poéticas, mas quase tudo eu guardava escondido, como muita gente faz, quando escreve um diário, por exemplo. Aliás, o Barthes tem uma expressão muito boa, que é a “mitologia pessoal” que cada escritor desenvolve e cultiva, e a minha era muito grande, bem organizada na minha cabeça, e fazendo referência aos que eu considerava os maiores, enormes artistas. Só para citar alguns (quanto mais artistas conhecemos, maior o nosso repertório, e isso não é privilégio de ninguém, tenho amigos de cultura e repertório bem mais amplos): Beatles, Caetano, Roberto Carlos, Luís Melodia, Gil, Rollin Stones, Milton, Pink Floyd, e por aí vai, e em literatura, Fernando Pessoa, Camus, Saramago, Sartre, Gregório de Matos, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto e por aí vai.

Voltando agora à pergunta, eu acho normal que a partir de um interesse artístico saiamos desenvolvendo vários outros. E também tem a importância dos amigos, das pessoas que são referências para nós, e as dicas que elas dão. Por exemplo, citei um professor de literatura, o Francisco Asher, que me abriu os olhos para o concretismo. Uma vez gostando, e acreditando que aquilo era bom, já passei a imitar. Aliás, isso é importante, a tal mimese aristotélica. Acho que sou um imitador de vários tipos de arte, porque todas me atraem.

Última resposta: talvez a poesia seja o meu gênero preferido. Mas também a música instrumental, o romance, o cinema, em alguns casos. Ainda bem que a humanidade tem essa grande multiplicidade de expressões e faz-se com que nos identifiquemos com muitas delas, às vezes sem saber direito qual a mais prazerosa.

3. Como é seu processo de criação e rotina de trabalho? Primeiro conte um pouco do processo da poesia, como surgem poemas? São trabalhados, ou são espontâneos? E como é o trabalho de um livro em prosa?

Já passei por várias maneiras de compor, escrever, me inspirar. Acabei muito influenciado pelo Fernando Pessoa quando já tinha uns trinta anos, e estava me formando em Letras. Em um depoimento, ele falava na importância da disciplina, de escrever todos os dias, e várias horas, de preferência. Fui descobrindo que o meu horário mais produtivo era a manhã, e quando terminei a faculdade, comecei a reservar as manhãs para me dedicar aos escritos.

Até hoje é assim. Quando não há um trabalho prioritário (que no meu caso foram os dois cursos de pós-graduação, a outra graduação, licenciatura e alguns trabalhos esporádicos), eu me dedico a organizar meus escritos na parte da manhã. Às vezes isso inclui também as letras de música, que em geral estão em um plano mais descontraído, de trabalho coletivo, e exigem menos concentração.

Os poemas muitas vezes surgem de anotações antigas. É assim: até hoje me falta tempo para fazer todas as coisas que quero. Então quando me vem uma ideia, eu a anoto rapidamente em uma pasta geral, e quando tenho mais tempo (uma manhã de sábado ou domingo, por exemplo, depois de entregar um grande trabalho), vou separando se aquilo tem mais jeito de poesia, conto, ou trecho de romance. É mais ou menos assim.

Já tive também coisas mais puras, que é como a maioria das pessoas trabalha: espera uma dessas manhãs tranquilas, ou outros horários de preferência, e passa a inventar tudo na hora: um longo poema, por exemplo. Para isso é bom estar inspirado, e nada inspira mais do que um amor verdadeiro, quando a pessoa se vê tomada daquilo, triste ou feliz. Existem músicas de amor lindas, e mesmo assim pode-se criar uma nova, baseada em sentimentos internos, quando são verdadeiros.

4. Conte um pouco como surgiu a ideia do seu livro ‘Outras Paragens’, romance histórico poético lançado este ano (2016)? E também fale como foi o desenvolvimento do livro e a rotina de trabalho.

O livro ‘Outras Paragens’ é meu primeiro romance, e espero escrever outros. Ele é assim não propriamente por escolha, mas foi como eu consegui fazer. Eu tenho preferência, na verdade, por romances mais curtos, mais diretos, em que não se perde o fio da meada nunca. O meu preferido talvez ainda seja ‘O estrangeiro’, de Camus, seguido de ‘As palavras’, de Sartre. Li muito o Saramago, e copiei um pouco o estilo dele em ‘Outras paragens’: irônico e isento de verdades.

Não queria puxar a sardinha para o seu lado, Clara, mas gosto muito do seu romance, o ‘Castelos tropicais’. Eu queria saber escrever assim, simples e direto, e é como pretendo desenvolver o meu próximo romance, quando chegar a vez.

Mas na verdade ainda tenho anotações para mais dois ou três romances “enrolados”, como é o caso de ‘Outras paragens’. Nesse primeiro romance, eu apostei tudo: todas as minhas melhores anotações eu tentei incluir nele, e por isso ficou tão inchado. E na verdade também ficou inchado porque eu não quis desperdiçar praticamente nada do que havia de informação na pesquisa de Maria Laura, minha prima em segundo grau, sobre os nossos antepassados no sertão.

Praticamente todas as informações da pesquisa histórica foram incluídas no romance, e por isso ele ficou tão grande. Eu reproduzo a história verdadeira (cronologicamente trabalhada por mim, quando a pesquisa dela foi feita com base em cada personagem) intercalando, costurando com as minhas ficções e, pelo menos na minha opinião, está bem claro quando é uma ficção e quando é um fato histórico (sem entrar no mérito de que os fatos históricos também são versões e, portanto, ficções).

Sobre a rotina de trabalho, seguiu aquela prática já explicada, de produzir pelas manhãs, tendo isso como minha principal atividade. E passou por três etapas (depois de separar em partes o fichamento do livro da minha prima, e delinear tudo). Ao concluir a primeira, apresentei para a família e tive alguns pareceres, dos poucos que leram, reformulando algumas passagens. Apresentei o resultado a duas revisoras, uma das quais quis intervir bastante na minha linguagem, então fui selecionando as revisões, e ficando com as que me interessavam. Do começo da montagem do texto à última revisão, passaram-se três anos.

5. Outra coisa bastante interessante em sua carreira são as parcerias artísticas. Alguns de seus livros têm ilustrações e fotos de outros artistas, os CDs sempre contam com muitos músicos. O que você tem aprendido com todas essas trocas? Acha que são essenciais?

Ainda sobre o ‘Outras paragens’, houve um processo interessante na montagem do livro, porque desisti de fazer pela minha editora, onde os sócios decidem por maioria, e tive a oportunidade de fazer pela Sempiterno, com quase total autonomia (houve trocas interessantes com a editora, e nenhum impasse). Assim, escolhi as imagens que queria, dos artistas de minha preferência, em especial o Dimitri Lee (fotografias) e a Gabriela Brioschi (aquarelas).

Trabalhar com outras pessoas sempre foi muito bom, e complementar. Trouxe essa prática da música, mas também da arquitetura, onde as pessoas produzem e se sentem muito felizes em trabalhar juntas. Arquitetos e músicos, é engraçado, me parecem classes parecidas, até no jeito de vestir. São muito unidos e sorridentes, um ajudando ao outro, sempre. Não por acaso, os meus parceiros em ‘Mitologia das abelhas e outros contos’ são jovens arquitetos, que conheci na faculdade, um trabalhando com arte gráfica e a outra com ilustração.

Na faculdade de Letras eu senti que as pessoas se misturam menos, mas criam-se laços muito fortes, também. Até mais fortes, eu diria, porque passam por lá pessoas inteligentíssimas, cultas, e que entendem perfeitamente o que cada palavra quer dizer, tornando as conversas realmente profundas. Tenho três amigos que são professores na faculdade de Letras da USP, e eu os admiro demais, de todo o coração.

Sobre as trocas serem essenciais, isso vale para tudo.

E sobre trabalhar coletivamente em música, não precisaria nem dizer. Todo mundo tem amigos músicos, e sabe o quanto os músicos costumam se dar bem, um com outro.

6. Você já está trabalhando em um novo projeto? Pode nos contar?

Atualmente são dois. O principal é um CD com poemas da escritora Clara Baccarin (do livro ‘Instruções para lavar a alma’) que foram musicados por mim, e serão interpretados pela cantora Luciana Barros. Conto com músicos de primeira linha para este trabalho, porque além da cantora, fazem parte o trombonista arranjador Itacyr Bocato, o baterista Percio Sapia e outros grandes músicos, que já trabalharam comigo no CD ‘Policarpo e sua banda’.

Há um quê de “por acaso” neste trabalho, assim como no outro, que é um livro de poemas, desmembrado de um anterior que não chegou a ser publicado. Este trabalho de musicar os poemas da Clara começa pelo fascínio que tenho por tudo que ela produz, da poesia ao romance. Tenho certeza que estou lidando com uma poeta que é coisa única na nossa literatura, e de primeira grandeza. Dessas que só aparecem de tempos em tempos. Tenho mestrado em literatura brasileira pela USP, já dei aula e li muito teóricos importantes, o Bósi, o Hansen, José Miguel, Massaud Moisés. Tenho conhecimento de literatura, e sei que a obra da Clara é coisa rara, que ainda está para ser descoberta (e reconhecida) pela crítica especializada.

Então, trabalhar com os poemas dela, é extremamente prazeroso. No final, depois de musicar uns doze, tive de economizar, e ler menos o livro, se não, não pararia de compor, achando todos os poemas lindos e totalmente musicáveis.

O bom é que trabalho com músicos realmente talentosos e criteriosos, e todos eles consideraram de muita qualidade este meu novo trabalho, de musicar os poemas da Clara.

O outro trabalho é um livro de poemas, como estava dizendo. Metade são poemas acumulados até 2012, que não passaram pela seleção de ‘A flor lilás’ (meu segundo livro de poemas, lançado em 2014) e foram depois reformulados, para um livro que mixava poesia e contos, e não chegou a ser publicado. Agora vou separá-lo em dois e começar por esta parte de poemas, juntando com as produções novas, de 2012 a 2016.

Esses são os meus dois projetos atuais, individuais, mas às vezes também me associo a projetos de outros artistas.

7. Gostaria de pedir para transcrever aqui um trecho de algum poema ou texto de algum escritor que gosta muito.

Vou respeitar a entrevistadora e não citar um poema, ou trecho de romance, dela mesma, que é a minha preferida e tenho dito isso sem meias palavras a qualquer um que me pergunte.

Mas se a questão é citar obras mais conhecidas, falo aqui de três, em trechos selecionados. Melhor, quatro (lembrei de outro de que não poderia abrir mão).

I. A segunda estrofe do poema ‘Triste Bahia’, de Gregório de Matos, musicado por Caetano Veloso na década de 70 e especialmente bem analisado por Alfredo Bósi em pelo menos dois ensaios que li.

A ti trocou-te a máquina mercante,

Que em tua larga barra tem entrado,

A mim foi-me trocando e tem trocado

Tanto negócio e tanto negociante.

II. A abertura do poema ‘Cântico dos cânticos para flauta de violão’, de Oswald de Andrade. E outros versos deste mesmo poema, como os dois que cito a seguir.

Saibam quantos este meu verso virem

Que te amo

Do amor maior

Que possível for

(...)

Toma conta do céu

Toma conta da terra

Toma conta do mar

Toma conta de mim

(...)

E se ele vier

Defenderei

E se ela vier

Defenderei

E se eles vierem

Defenderei

E se elas vierem todas

Numa guirlanda de flechas

Defenderei

Defenderei

Defenderei

(...)

III. O canto 2 da ‘Psicologia da composição’ de João Cabral de Melo Neto (todo ele).

Esta folha branca Me proscreve o sonho, Me incita ao verso Nítido e preciso. Eu me refugio Nesta praia pura Onde nada existe Em que a noite pouse. Como não há noite Cessa toda fonte; Como não há fonte Cessa toda fuga; Como não há fuga Nada lembra o fluir De meu tempo, ao vento Que nele sopra o tempo.

IV. ‘Elegia’, parte da tradução de Augusto de Campos para o poema ‘Elegy: going to bed’, de John Donne, que foi (lindamente) musicada por Péricles Cavalcanti e (a música lindamente) interpretada por Caetano Veloso.

Deixa que a minha mão errante adentre Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre Minha América, minha terra à vista Reino de paz, se um homem só a conquista Minha mina preciosa, meu império Feliz de quem penetra o teu mistério… Liberto-me ficando teu escravo Onde cai minha mão meu selo gravo Nudez total – todo o prazer provém do corpo Como a alma sem corpo, sem vestes

Como encadernação vistosa

Feita para iletrados a mulher se enfeita

Mas ela é um livro místico e somente

A alguns, a que tal graça se consente

É dado lê-la

Eu sou um que sabe

8. E por último, mas não menos importante, gostaria que você transcrevesse um trecho de texto, música ou poema seu (pode ser mais do que um se você preferir).

Inédito, dedicado a Clara Baccarin:

Não sou anjo

Nem bruto

Antes o Sol

A Lua e a Terra

Só você

Doce e calma

É mais divina

Que a natureza

Se não posso

Me afastar

Nem sair de mim

Quero estar

Acordado

Quando vier o Sol

Pois agora só me resta

Amar você por esta fresta

Obrigada!

Obrigado a você, que é tão linda.

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