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Entre a partitura do verso e a ternura da perda: leitura de um poema de Filipe Moreau


(Fotos: Miriam Homem de Mello)

A poesia de Filipe Moreau deve ser descoberta aos poucos, nos vãos das leituras, entre grãos de areia, estrelas e paisagens que se dissolvem. A flor lilás: poesia (Editora Neotrópica/Coleção Laranja Original Editores, 2014) amalgama, como aponta a convidativa orelha de Beto Furquim, “sutileza e despojamento, inquietude e amor sensual pelas palavras”. Trata-se de um livro com diferentes acordes, como se houvesse uma “orquestração de instrumentos distintos” – haicais, concretudes, doublets, poemas epigramáticos, momentos inusitados e bem-humorados e algumas nuances barrocas, que sobressaem em certas imagens – juntos, tais “instrumentos” constituem o som e o sentido de uma delicada e pungente flor lilás, seu perfume-melodia (dis)sonante, que exala memória e alumbramento diante do mundo, das perdas, dos encontros e desencontros do amor, da procura da poesia, seja pela invenção concreta, visual, seja pela busca mesmo da palavra poética em composições em que o silêncio é música que se adivinha.

Esses elementos todos ecoam e ao mesmo tempo respondem ao belo trabalho fotográfico de Miriam Homem de Mello, destacados pelo bonito projeto gráfico de Yves Ribeiro e fazem do livro um objeto-arte, a ser apreendido aos poucos, pelo mergulho nas palavras, tipos negros sobre o papel pólen e, para além delas, imagens, cores, padrões que nos fazem imaginar texturas, como esta, da página 81.

Fortemente marcados pela experiência e pelo tom confessional, os poemas revelam, muitas vezes, um lirismo que flerta com a tradição, reiteração de imagens poéticas, rimas e leitura do concretismo, que a essa altura do estado das artes de nossa poesia, pela influência presente entre vários poetas, já é, de alguma maneira, tradição, mesmo que sempre calcada de invenção. De outro ponto de vista, os poemas surpreendem pelo olhar fotográfico, capaz de captar aquilo que Cartier-Bresson chamou de “instante decisivo”.

Tal olhar não é apenas aquele que vai do sujeito para o mundo, ou dos objetos em direção ao sujeito como algo da ordem da fenomenologia da percepção, mas um ver interior, que flagra, com a câmera dos afetos e da sensibilidade, estados de alma distintos, muitas vezes solitários, que recebem caráter documental pela datação dos poemas, a meu ver, muito apropriada, revelando uma história da escrita – mesmo que para o leitor ela seja fugaz e, ao mesmo tempo, a historicidade da escritura, feita como corpo, na pele dos poemas, mostrando, como aponta a orelha de Beto Furquim, “aproveitamentos diferentes de certo achado poético” – eu avançaria e diria: aproveitamentos diferentes das cicatrizes que se fizeram achados poéticos, ou seja, para uma mesma experiência, as diferentes marcas de inscrição na memória subjetiva desencadearam diferentes expedientes e organizações poéticas, por isso a experiência, a confissão, a criação têm sua dose de solidão.

Tal solidão não diz respeito ao sujeito lírico em si, embora isso possa acontecer, mas indo além, à solitude, estado em que a música dos poemas está depois do seu silêncio e o exercício do verso é um exercício de olhar, ouvir e sentir a poesia, ritualisticamente, melodicamente. Há momentos no livro em que essa experiência da palavra, seu som, sua procura e o lirismo encontram um ponto alto. Tal movimento não é necessariamente disfórico ou triste, mas tem um tom melancólico que engendra uma ternura profunda pelo entorno e que vai deste ao mundo interior, retornando em forma de poema.

A mim parecem os momentos em que Filipe é mais Filipe e se despoja das influências para atingir sua própria voz, cicatriz e memória da/em sua palavra poética. Em outros trabalhos do autor, isso também acontece. Por exemplo, em A Origem do Amor (Laranja Original, 2017), esse aspecto pode ser notado em muitos momentos, um dos mais belos é em “O país dos caranguejos”:

Vai-se a inércia, novos manejos. Caranguejos saem de suas tocas, começa o mundo. Primeiro era para contemplar o fenômeno natural do céu mudando de cor, com as coisas se tornando visíveis. Depois, pensa-se o dia a dia, as tarefas. Caranguejo sai com um punhado de areia nas garras e vai cavando novo túnel.

Caranguejos saem das tocas na inversa razão do novo. Só quando não há aparentemente nada que não seja o movimento do vento, das marés e do sol eles saem. E saem para uma continuidade do que não constroem, apenas perpetuam. Para eles é como se houvesse um rito de primeira criação, que eles imitam. A ordem natural das coisas é cavar túneis, alimentar-se, acasalar-se e crer que as novas gerações farão o mesmo. (MOREAU, 2017, p.15)

Aqui a travessia do caranguejo é perpetuar – deve-se ler o “imitar” como algo da potência da mímesis, representação do mundo, das coisas, da poesia, enfim, o rito silente da primeira criação. A continuidade não é monotonia, mas assume uma dimensão transcendente que perpetua a existência pela chave do poético que está na interioridade do sujeito, por isso, inclusive, em outro dos textos de A origem do amor adverte-se: “Antes de ler, ler-se”. Moreau cria representando, é do entrelugar mimético-poiético que ele rega os vasos da memória e do novo: água que cai, barulho de chuva, mar, acordes sinestésicos (Moreau, 2017, p. 21).

Em A flor lilás: poesia um dos poemas em que se pode flagrar tais instâncias para as quais chamo a atenção é o poema sem título que eu, para situar a minha leitura, vou denominar “um verso” (Moreau, 2014, p. 95):

Um verso Que em seu início Muito promete E nada cumpre

Decepciona Mas deixa em si Algumas ilhas De privilégio

Graça e ternura Pelo que se deseja Ou finge ter: Doçura nos lábios

O poema chama atenção pelo caráter formal em primeiro lugar. São três estrofes, de quatro versos, a maioria de quatro sílabas. A forma sinuosa, ondulante, e a oscilação métrica dão respaldo ao tema – o verso que promete e nada cumpre.

A leitura reivindica sempre quatro sílabas, pela força rítmica, mas vez ou outra o verso encurta, “decepciona” (v.5). Decepciona nessa caso específico porque para ter quatro sílabas, o leitor deve forçar a diérese, transformando o ditongo em hiato: de-cep-ci-o-na. Então, a decepção alia forma e conteúdo, não é só a vida ou a promessa do verso, mas o verso em seu corpo que não chega ao padrão métrico. Essa é uma das sutilezas da poesia de Moreau, que em sua aparente simplicidade pode obliterar, para o leitor desatento, a criação. Vale a pena percorrer o poema desde o início.

Na primeira estrofe, o primeiro verso “Um verso”, de duas sílabas, surge como o nascimento daquilo que tanto se busca, e que já havia sido anunciado no poema imediatamente anterior “Este meu verso/Já em seu berço/Já é o começo/ De um bom acesso” (Moreau, 2014, p. 94), mas cujo encontro é frustrado no poema sobre o qual me debruço aqui: “Que em seu início/Muito promete/ E nada cumpre”. Fruto de um movimento interior, o verso emerge, para submergir como decepção – daí que o número de sílabas do verso 5 significa ainda mais. A oposição semântica entre “muito” e “nada” dá o tom do poema, é do vão (ou abismo?) entre esses dois aspectos que a experiência, por triste que seja, fará sentido, convertendo-se em criação: “Mas deixa em si/Algumas ilhas/De privilégio”.

A marcação adversativa “mas” anuncia a metamorfose da frustração constatada na primeira estrofe em algo que, ao fim e ao cabo, transcende a promessa inicial do verso que não se fez, o próprio poema. O privilégio em forma de ilhas, aqui e acolá distribuídas pelo mar do poema, dará sustentação ao trabalho poético. É importante notar que a carga metalinguística não faz concessões à banalização da reflexão metapoética, pelo contrário, em expediente muito sofisticado, a metalinguagem alia-se à experiência subjetiva e não se pode separar a falha do verso das decepções da vida. Desse modo, a emoção e a subjetividade aliam-se à função poética, no corpo ondulante do poema, em suas “ilhas de privilégio”, que são metáfora da solidão, em uma leitura mais apressada, porém também da solitude, se aceitarmos o convite para mergulhar no entrelugar muito-nada, mencionado logo acima.

É porque há ilhas de privilégio, espaços de solidão e silêncio, que o verso frustrado valerá não pelo que não foi ou poderia ter sido, mas pela travessia que impõe, terna, desejante, como aponta a terceira estrofe: “Graça e ternura/Pelo que se deseja/Ou finge ter/Doçura nos lábios”. Sem desperdiçar a frustração, convertendo o verbo em algo vivido (vívido), o poeta faz notar a graça e a ternura da perda; o poema, como partitura da experiência, não sustenta o que dá certo, mas aquilo que, pela falha e falta é graça e ternura. Dois pontos merecem ser ressaltados: o primeiro é que ao se negar a ser o que promete, o verso de que se fala transforma-se em poema de fato, ou seja, num jogo de fingimento, o poeta nega e ao mesmo tempo afirma o seu poema, de modo que a poesia resiste e insiste e ao se fazer, como eu disse, no vão, no entrelugar, mantém sua carga utópica, a da manutenção da graça e da ternura “pelo que se deseja” (v. 10).

O décimo verso, de 6 sílabas, é um dos pontos altos do poema, pois alia magistralmente forma e conteúdo: é justamente a sustentação do desejo que se alonga em termos temáticos (conteúdo semântico do verso) e formais (tamanho do verso). Para falar do desejo, o verso é maior, pois é a duração do desejo que sustenta a poesia. Esse mesmo verso poderia definir um dos leitmotivs da poética de Filipe Moreau: o desejo de desejar o amor, o mundo à volta, a poesia, o silêncio que orquestra a música da doçura nos lábios.

Uma vez que o livro é composto de poemas e imagens, não seria possível concluir a leitura sem atentar, ainda que brevemente, para a fotografia situada na mesma página e que compõe o seu sentido: de silêncio, solidão, erótico, sutil, em nuances/degradês de beges, marrons, a areia das ilhas, atravessada pela linha escura que erotiza a fotografia, como a duração do desejo erotiza o poema (abaixo, à direita).

Aliando metalinguagem e lirismo, aliás como fazem poetas da envergadura de Nuno Júdice, Moreau escolhe uma das seis lições de Calvino, a leveza. É nela e por ela que o poema se articula em sua erótica do entrelugar, perda, ilha, desejo, ternura, graça, doçura dos lábios, a partir da travessia ou da ultrapassagem da falha do verso que prometeu e não cumpriu. E o que é a criação senão a erótica da vida a partir da falha?

Cavando buracos como o áporo drummondiano ou como os caranguejos, o poema de Filipe Moreau ensina que o que está em jogo não é a falta, mas o que fazemos com ela, no que a convertemos, em constatação de perda simplesmente ou poema, orquídea e ilhas, desejo e lábios. A opção é claramente pelo segundo caminho, perpetuando, ritualisticamente, o percurso dos caranguejos para lidar com o verso que não vem, com a dor que se impõe no meio do travessia. Toda dor é caranguejo, a promessa que não se cumpre também pode ser dor, mas de toda dor sobram ilhas, os privilégios pelo que se deseja quando os lábios sabem ser doces e ternos, mesmo quando o verso falta, quando a palavra falta, quando a vida falta, porque é justamente aí que o silêncio e a partitura do poema ensinam ao sujeito lírico a graça de existir.

Diana Junkes nasceu em São Paulo em 17 de junho de 1971. É doutora em Estudos Literários pela UNESP-Araraquara e foi professora visitante nas Universidades de Yale e Illinois. É crítica literária e professora de literatura na Universidade Federal de São Carlos, onde também coordena o Grupo de Estudos de Poesia e Cultura. Dedica-se ao estudo da poesia brasileira contemporânea e, particularmente, à obra de Haroldo de Campos. Dentre suas publicações destaca-se o livro As Razões da Máquina Antropofágica: poesia e sincronia em Haroldo de Campos, Editora da UNESP/2013. Além dele, tem significativa produção de artigos e capítulos de livros, voltados para os estudos de teoria e crítica de poesia. Possui poemas publicados em revistas eletrônicas e blogs e é autora do livro de poemas clowns cronopios silêncios pela Editora Urutau (2017).

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